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sábado, 30 de maio de 2009

Irene Lucília - em jeito de homenagem

CARTA A IRENE

Perdi palavras pelo caminho. Ontem, sabia de cor as histórias que o vento contava ao ouvido da minha infância. Ontem, acreditava que o Tordo cantava para mim e me enfeitiçava os sonhos de palavras verdes. Ontem, eu era Angélica e amava o mar e a serra e tinha olhos de horizontes e amanhãs. Ontem, também eu tinha corpo de ilha e ia consigo, com um pé dentro d’água e um poema na mão.
Voltei, agora, Irene, a lembrar-me dos cisnes, porque a hora se imobilizou nos versos que reli e que voltaram a derramar Água de Mel na solidão branca desta folha vazia.
Talvez tenha vergonha das palavras, porque Atena não canta e o Tempo protesta porque não tem tempo de abrir mais portas, porque o vento reclama a vida, porque, Irene, as minhas mãos não sabem amansar os frutos, nem desfazer as tintas, nem dizer as notas que se penduram nos beirais das pautas, quando o sol se põe e a rua adormece.
Só me resta o silêncio do fim do caminho, que não é o da Penteada, mas o dos afectos, o dos significados imprecisos, o das sintaxes imperfeitas.
Assim: espalhei as memórias sobre a mesa e peguei nos silêncios - silêncios de asas, silêncios de mar alto, silêncios de gaivotas que dormem nas “folgas do sol”[1]. Fui em busca de mim na ternura azul com que canta a ilha, no arrepio que faz estremecer os jacarandás, na simplicidade pequenina da voz que tem derramado por esta cidade à beira do mar, à beira do desejo, à beira de ser barco, à beira de qualquer coisa maior.
E encontrei cheiros antigos a subir as calçadas, gritos de estrelas no vazio das noites; encontrei “a luz grega de Setembro”[2] dentro dos cestos que transportaram as minhas angústias e que eu transformei em vinho.
Pelas suas mãos, sentei-me “à sombra do grande mistério / de pensar”[3], para que o tempo pudesse amadurecer as palavras. Pelas suas mãos, Irene, como pela mão de outros poetas, conheci as luzes e as sombras, abracei, perplexa, o coração das ruas e quis ser porto e navio, terra e gaivota. Às vezes, gostaria de ter sido eu a escrever que “O sol vem pôr-se em meus olhos / porque a montanha sou eu”[4]. Às vezes, Irene, tenho vontade de ser poeta. Como agora, neste instante vazio em que me faltam as metáforas.
Dá-me licença, Irene? Deixe-me defini-la assim: “Repartida. Presa pelo sentir. Liberta pelo pensar. Pedra e nuvem; raiz e asa; fogo e orvalho; amarra e oceano”[5] . Vejo-a assim: ancorada ao porto com vontade de partir; ilha e viagem. Leio-lhe uma alma maior que o corpo, que se derrama no desenho desta cidade que partilha comigo.
Devolvo-lhe o silêncio que me cura as palavras. E digo-lhe que sim, que vale a pena, que o seu nome continua a acordar as marés. Permita-me outra ousadia, Irene. Lembra-se da Rosa Panchera[6]? Vou roubar-lhe a frase e fazer dela a minha voz: “Não se vive por acaso, meu amor!”[7]

[1] Andrade, Irene Lucília, Angélica e a sua espécie, Ed. Signo, Ponta Delgada, Açores, 1993: 15
[2] Andrade, Irene Lucília, A mão que Amansa os Frutos, Ed. Cadernos da Ilha, nº 4, Funchal, 1991: 14
[3] Idem, ibidem: 19
[4] Andrade, Irene Lucília , Ilha que é Gente, DRAC, Funchal, 1986:21
[5] Andrade, Irene Lucília, Angélica e a sua espécie, Ed. Signo, Ponta Delgada, Açores, 1993: 30
[6] Ref. a personagem de Andrade, Irene Lucília, Angélica e a sua espécie, Ed. Signo, Ponta Delgada, Açores, 1993
[7] Andrade, Irene Lucília, Angélica e a sua espécie, Ed. Signo, Ponta Delgada, Açores, 1993: 62

In: Revista Margem, 29 de Maio de 2009

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Bem Vindos, amigos!

Porque somos mais. Porque estamos juntos. Porque a família vai crescendo. Porque nos enriquecemos. Porque sim.

Bem vindos, colegas! O meu espaço é tambem a vossa casa. Partilhemos as palavras. Porque as palavras são redondas como abraços.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Vamos acordar as fadas? - II

- Era uma vez.
Começou assim a minha história de amor: eu e os livros, eu e as florestas encantadas, eu e o tempo do
- foram felizes para sempre.
Cresci, assim, embalada no beijo que se seguia à história e me aconchegava o dia num sono reparador com mão de mãe:
- Dorme bem, meu amor.
E eu dormia. Porque os anjos e as fadas velavam os meus sonhos e impediam que as bruxas e os dragões me acordassem o medo. Depois, cresci. Os livros cresceram comigo e trouxeram – me as aventuras dos Cinco e dos Sete, os lanches que apeteciam comer, a liberdade de um mundo sem adultos, a alegria do dever cumprido.
Mas a vida (a minha vida, meus amigos) precisou de outras palavras, de outras histórias, de outros lugares, de descobertas de coisas reais. Percebi, então, que eu vivia dentro dos livros, que as histórias que eu lia eram as minhas histórias que alguém tinha passado a limpo. Lê-las era recebê-las de presente.
- É tua. Foi por ti que a escrevi.
Com os livros, ri e chorei. Foram eles que me aqueceram o peito quando a noite me encontrou triste ou cansada. Com eles, ouvi a música das palavras, fui à lua, olhei directamente para o sol e acreditei que a felicidade era possível.
A vida, porém, levou-me a guardar as fadas e os príncipes no fundo de mim. Escondi as palavras no baú do que fui. E fiquei mais só. Esqueci-me de que o lugar dos livros é no coração e que o tempo para ler é um tempo roubado ao tempo social de viver, de trabalhar, de estar na moda. Onde é que eu perdi aquela espécie de feitiçaria em que o escritor se encontrava comigo e éramos felizes?
Mas, a verdade é que, todos os dias, somos os protagonistas da nossa própria historia. Todos os dias, lemos e escrevemos a nossa vida. Mas, só nos livros, podemos escolher sonhar ou sofrer, partir ou ficar, voltar para trás, reler, saltar páginas, ou simplesmente, suspender a viagem.
Os livros querem morar dentro de nós. Querem construir connosco um amor para a vida. No silêncio que guardam as palavras. Na saudade do tempo em que o
- era uma vez
tinha voz de mãe ou de professora, voz de mel e de cerejas.
Eu gostava muito de tentar. Outra vez.
Ajudem-me, então, a acordar as fadas que dormem nos livros e que nos enfeitavam as noites de antigamente. Ajudem-me a restaurar as minhas asas para irmos, juntos, à floresta encantada das personagens de papel, à clareira onde se esconde o beijo com que o Príncipe acordou a Bela Adormecida. Preciso de gente de boa vontade. É urgente restaurar o sonho que se perdeu de nós numa das ruas da nossa vida.

(texto publicado na página da DRE- Baú de leitura)

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Romeiro, quem és tu?

"- Romeiro, quem és tu?
- Ninguém."
- E tu, professor?
Nada. O professor não diz nada. Cala as palavras no silêncio, porque não sabe que resposta dar: já foi saber, já foi pilar, já foi abraço.
- Quem és tu, professor?
Nada. O professor não diz nada. E, mesmo que dissesse... E mesmo que explicasse ...
A sala está deserta. Os miúdos esconderam-se dentro dos computadores. O professor não conhece esse mundo. E tem medo. Dentro do computador, não há lugar para o seu nome, não há lugar para a sua voz, não há lugar para a doçura do seu olhar.
O professor está perplexo - não sabe o que há-de fazer do seu abraço.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

E agora?

Onde fica o futuro? Onde estão os alunos que sempre tivemos, os que sempre quisemos ter, os que gostariamos de ter tido e nunca tivemos? Onde está a sede de saber outras coisas? Onde está o
- professora (que é pressora), o toque , já?
Parámos no cansaço antigo das aulas de quadro e giz, de uns bonecos para o pontapé de saída das aulas. Ficámos aí. Juntos. Completamente sozinhos. Nós e os alunos.
E tal como o poeta dizemos que não vamos por aí. Mas então, vamos para onde? Como? POr onde? Com quem?

terça-feira, 12 de maio de 2009

Porque é 12 de Maio...



Mãe,

guardei a lua para te oferecer esta noite. Trouxe-te a luz dos caminhos, o canto dos peregrinos, o silêncio das noites. Trouxe-te o melhor de mim, apesar da vida e do tempo e do medo. Trouxe-te quem sou: às vezes sorriso, às vezes desespero, às vezes abraço, às vezes solidão.
Vim, Mãe Santíssima, porque em ti encontrei a minha casa. Mesmo quando a noite me apagou a esperança, quando a dor me choveu nos olhos e me derramei no chão. Vim, Senhora de todos meus passos, porque sempre houve lugar para mim no abrigo azul do teu manto, na ternura branca dos teus silêncios, nas palavras caladas, guardadas na cruz do teu Filho.
Esta noite, olhaste outra vez para os meus olhos e disseste – me:
- Eu estou contigo.
Eu sei, Mãe. Senti-te à beira da minha cama, nos momentos de pedra; senti-te estrela, nas alturas de alegria; senti-te presença na hora das lágrimas.
Por isso, só me resta colar os meus olhos aos teus, as tuas mãos às minhas e agradecer-te, da pequenez da minha humildade por nunca teres largado o meu coração.
Senhora de Fátima, peço-te, esta noite, aquilo que eu, no segredo de mim, pedia à minha mãe antes de dormir: Se eu me perder, encontra-me. Ámen.


segunda-feira, 11 de maio de 2009

Regresso aos livros

Voltei. Tenho andado um pouco por aí, a falar de livros, de palavras e da importância que a leitura tem na nossa vida.

Será impressão minha ou os miudos do campo ainda acreditam no poder dos livros? No entanto, têm (quase) todas as modernices que os nossos têm.

Será que nós, profs da cidade, desistimos de ensinar a gostar de ler?

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Vamos acordar as fadas?

Não me perguntem porquê, mas a minha relação com os livros é (quase) uma história de amor. De amores, talvez. Um lugar de encontros e desencontros, de procuras e de descobertas, de memórias minhas que alguém passou a limpo e delas fez uma história que, no momento em que a leio, é minha.
Isto é assim desde que me lembro de mim, desde o tempo do
- era uma vez
que coroava os dias da minha meninice. Lembro-me ainda do beijo que se seguia ao
- e foram felizes para sempre,
um beijo que curava todos os males que as tropelias do dia tinha trazido. Todos.
Depois, cresci. E como todos os adolescentes, guardei as fadas e os príncipes no fundo de mim e fui à procura de outras coisas. Elas também estavam nos livros: a aventura, a liberdade, o amor, o desencanto. Com os livros, ri e chorei, descobri que havia muito mundo para além da minha janela, descobri o encantamento das palavras, percebi que não tenho de ter medos, porque o meu caminho já foi pisado por outros.
Só mais tarde percebi que o lugar dos livros é no coração. Uma espécie de feitiçaria em que o escritor e o leitor se encontram e são felizes. A vida ensinou-me que os bons livros aquecem o peito quando a noite chega e nós estamos tristes. Os bons livros permitem que os nossos olhos ouçam as palavras e nos convidem a ir com elas, numa viagem em que se pode chegar perto do sol sem nos queimarmos ou roubar a lua, apenas pelo prazer de a guardar no bolso. Os bons livros escondem os beijos que não damos, as palavras que escondemos, a vida que gostaríamos de ter. Um dia. Qualquer dia.
Todos os dias somos os protagonistas da nossa própria historia. Todos os dias, lemos e escrevemos a nossa vida. Mas, só nos livros, podemos escolher sonhar ou sofrer, partir ou ficar, voltar para trás, reler, saltar páginas, ou simplesmente, suspender a viagem.
É por isso que me entristece saber que há gente que ainda não descobriu a magia de ler, gente que, simplesmente, matou as fadas que enfeitavam as noites de antigamente.
Os livros querem morar dentro de nós. Querem construir connosco um amor para a vida. No silêncio que guardam as palavras. Na saudade do tempo em que éramos felizes.
E mais: quando todos falham, quando os amigos se vão embora, quando as estrelas se apagam na noite, é lá que encontramos abrigo, porque é lá que dorme o beijo com que o Príncipe acordou a Bela Adormecida e os sonhos que desejam morar no corpo de quem tem coragem de aceitar o convite que um livro nos faz:
- Dança comigo esta dança?