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sexta-feira, 23 de julho de 2010

PROJECTO PARA UM DIA DE VERÃO

O sol acorda a manhã que lava a cara no mar. A cidade levanta-se, no vagar das férias e procura ver o que não viu durante o ano: a brancura das casas que sobem a montanha, o remate branco do mar na orla da ilha, o bailado das gaivotas a namorar os beirais, o bordado a xadrez da calçada do chão.
E pensamos,
- vai ser hoje
porque o sol sorri lá em baixo no mar e temos mais tempo. Dentro de nós, fazemos a lista do que nos falta fazer: telefonar ao amigo que não vemos há muito tempo, visitar o que cala, sozinho, a sua solidão, sorrir para quem se cruza connosco no azul fresco das ruas.
Hoje, vamos dizer
- bom dia,
e obrigar quem leva os olhos no chão, a olhar para a nossa voz e a iluminar o seu olhar com a luz dos nosso.
Hoje, vamos criar clareiras de alegria. Vamos falar de esperança e de coragem. Vamos inventar tempo para ver, para escutar, para sentir o ar que nos sacode os cabelos. Vamos fazer a vida acontecer, como faz a natureza que explode em flores, rompendo a lama, iluminando a negrura das rochas, abrindo gargalhadas na dureza das coisas.
Hoje, vamos redescobrir o calor dos abraços. O Verão entra assim, dentro de nós, aconchegando o bater dos corações, um no outro. Vamos desfazer os abismos que nos separam. Vamos voltar a confiar no amigo, como dantes, como quando não tínhamos medo das traições ou das palavras que têm dois gumes e que cortam como se fossem facas.
Não custa nada: nem suor, nem dinheiro. Um instante, apenas. A eternidade guarda-se no silêncio de um abraço. Quando nos abraçamos, não somos dois nem estamos sós, somos felizes.
- Dá-me um abraço?
Então, será mesmo Verão. Mesmo que o sol não precise de ir ao mar lavar a cara, porque a chuva o molhou.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

SOBRE O SILENCIO


“O silêncio é a maior sabedoria do homem” (Píndaro)
Shshshiu!!!
Deixem falar o silêncio. Ouçam-no na alegria dos dias de sol, nas ondas que despenteiam os calhaus, na brisa verde dos campos. Ouçam-no no olhar dos amigos que se abraçam, no riso dos meninos na babugem do mar, nos segredos que o vento conta às árvores, quando o sol se despe e a noite cai.
O silêncio tem muitas coisas para dizer: fala de lugares secretos onde a serenidade adormece, fala da nascente das lágrimas, fala da raiz branca da paz. Com ele, é possível irmos à procura do princípio, daquele tempo em que a felicidade se escrevia com histórias pequeninas e se desenhava nas papoilas, nas gargalhadas penduradas nos beirais, na segurança da mão do pai, no nome mãe dito na aflição.
O silêncio, o verdadeiro, vive num lugar escondido dentro da terra, dentro do mar, dentro de nós. Derrama verdades na nossa consciência e acende os recantos nocturnos que guardámos dentro do peito. Não é fácil escutá-lo. Eu sei. Então, aumentamos o volume da nossa voz, falamos mais alto, cada vez mais alto, para nos fazermos ouvir. Andamos na rua, com os ouvidos tapados com músicas do mundo e não ouvimos a nossa.
E estamos sós. Cada vez mais longe dos outros. Cada vez mais longe de nós. Cada vez mais longe de Deus. Cada vez mais longe.
Talvez ainda estejamos a tempo. Vá, só um bocadinho. Vamos ouvir o silêncio, antes que seja demasiado tarde?

sábado, 17 de julho de 2010

PORTO SANTO

Querem que eu conte? Eu conto.
Naquele tempo, as palavras calavam-se para ouvir passar a vida. A terra tinha as luzes acesas até tarde, porque era Verão. Agosto, talvez, que é o mês em que o céu está mais feliz. O mar, de um azul - azul, abria-se no cais, caseado de espuma.
No barco, o mundo. No peito, a aventura. Na gargalhada, a alegria de ir de férias e de levar dentro das caixas tudo o que era preciso para ser feliz: a toalha, o bronzeador, o bacalhau para o enjoo, o medo da Travessa, a vontade de chegar e pisar o chão louro de um Porto Santo que nos enfeitiçava os sentidos.
Depois, o desembarque mareado nas colunas do cais velho, o andar de marinheiro mesmo depois da amurada, os amigos à espera, os olhos gulosos de mar e o cheiro brilhante do sol.
Esses eram os dias da liberdade merecida. O bafo quente dos cardos e dos canaviais inebriava-nos de tudo. Éramos miúdos inocentes e felizes. Não precisávamos de mais nada, porque não tínhamos medo: nem do sol, nem do cancro, nem da vida. Estávamos juntos e tínhamos tempo para sermos uns dos outros. Partilhávamos a casa com outra família, vivíamos em comunidade durante duas semanas: tudo era de todos: o pão e as uvas, a água da Fonte da Areia e os figos do quintal.
Quando a tarde caía, vermelha e quente e o sol tomava banho no horizonte, um banho de mangueira à porta de casa tirava-nos a areia e refrescava-nos o espírito.
O resto? Uma mesa de gente
- abençoa, Senhor, o alimento que vamos tomar,
a fome de que quem é novo, as conversas cruzadas sobre os pratos, as histórias de um dia em que o mundo se guardara na praia, na sesta do alpendre, no passeio de jerico, no queimor da pele sem medo de escaldões, na roda da eira,
- ei, Morena!
As noites do Porto Santo tinham sabor a liberdade. Andávamos à solta no Largo das Palmeiras, provando os gelados do quiosque, entoando Zeca Afonso, nas escadinhas do cais, contando anedotas à volta da fogueira, ao pé das casas dos barcos.
Não tínhamos dinheiro, nem televisão, nem sabíamos que um dia, um aparelho chamado computador havia de mandar na nossa vida.
Não tínhamos nada. Apenas amigos e vontade de viver. Tínhamos tudo o que era preciso e éramos felizes.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

da ilha e de mim


Quando me sento na boca do vulcão, olho para dentro da ilha. O seu ventre de fogo e magma guarda os segredos da força que rasga a terra em partos de verde. É daqui que caseio o mundo. Cada ponto do meu bordado esconde as raízes que me prendem a este lugar. Bordo a minha vida, embalada pelas palavras do vento que vem do chão onde me plantei.
Conta-me histórias antigas de lágrimas do céu que caíram em chuva e afogaram o fogo do princípio dos tempos. Fala-me de homens que vieram do mar e desbravaram os gritos calados da floresta. Fala-me da bravura das mãos que abriram rugas na terra e subiram as encostas e construíram as casas no abraço das vides. Fala-me do arrepio das paredes da serra, quando a água escorre em cascatas, riscando os montes de branco.
Derramo o bordado sobre o colo. Calo o bater do meu peito para ouvir o silêncio da ilha. E olho para o horizonte, porta de entrada de gente, porta de saída de sonhos. Está lá o mar, a abraçar de azul e futuro a minha vida. Há mais mundo para além da praia. Muito mais.
Agora, deixo falar as marés. E elas contam de um mar branco de açúcar, enfunando as velas das caravelas. Contam de regressos e de desenhos sagrados da Flandres, guardados em arcas e depositados na beira do vulcão. Falam de saques de piratas, de fomes e de lutos. Falam de um tempo que já não é, porque as gaivotas o levaram.
Estou sentada na boca do vulcão, mesmo à porta do mar. E sei que viver aqui é ter o mundo dentro de mim e tê-lo também a meus pés, imenso, à minha espera.
Tenho o bordado no colo, os olhos no horizonte. Da varanda da ilha, vejo a vida. Do alto do Monte, a Senhora sorri. E eu sou feliz.