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terça-feira, 30 de março de 2010

O(S) PARTO(S) DA ILHA

O céu derramou-se em estrondos líquidos sobre a cidade. Na manhã desse dia 20, rebentaram as águas à terra e a montanha pariu o desamparo num leito de dor e de morte.
A água, feiticeira, desceu a serra, invadiu as casas e as almas, marcou de sangue o que antes era verde e sereno e feliz. Um instante. Uma eternidade.
De joelhos, a ilha entregava ao mar os restos do parto da terra. De joelhos, lutava para não morrer. De joelhos, pedia à chuva que parasse, ao vento que se calasse e ao tempo que deixasse de ser infinito. Um instante. Uma eternidade.
Foi um instante para que as sirenes se sobrepusessem ao grito das ribeiras e rasgassem a ilha. Foi então que as mãos se encontraram e a abraçaram. Foi então que as noites foram dias e a força dos braços trataram das dores, reanimaram os desencantos, restauraram a esperança. Uma eternidade. Um instante.
Um mês depois, a cidade espreguiça-se, devagar. A Primavera, envergonhada, vai acordando do medo. A minha terra também. E eu. Talvez seja, então, tempo de lembrar: que ninguém se esqueça das mãos. Nem do trabalho. Nem da coragem. Que ninguém se esqueça dos que não voltaram a casa. Nem dos que, à procura de alguma coisa, se tornaram húmus desta terra, grávida outra vez. Que ninguém se esqueça dos que, com as mãos cheias de lama, limparam as lágrimas e acreditaram no milagre. Que ninguém se esqueça que a angústia dura um instante. Uma eternidade. Exactamente como a felicidade. Como a morte. Como a vida.
Há um mês, os olhos da ilha choraram no mundo inteiro. Hoje, o mundo inteiro tomou a ilha nos seus braços e ajudou a levantá-la do chão. Connosco dentro. Com a serra, imponente outra vez, a olhar o céu. Com o mar a querer ser de novo azul e porta aberta de entrada.
Há um mês, rebentaram as águas à terra. Hoje, rebentam flores nos beirais da lama.
Há um mês, a manhã do dia 20 anoiteceu. Hoje, a manhã é quase amanhã. Porque futuro. Porque luz. Porque a ilha está grávida, de novo. Mas, desta vez, as andorinhas já anunciaram que o parto será feliz. As janelas estão abertas. O sol já vem.