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domingo, 29 de maio de 2011

UMA HISTÓRIA DE MIM


Era uma vez
e a minha história começa num tempo em que havia tempo para ser feliz. Os miúdos conheciam a alegria de estar juntos e de brincar, descalços no terreiro, e de jogar ao pião nos quintais e de saltar à fogueira nos caminhos, nas noites de S. João.
Eram tempos de liberdade, os tempos da nossa meninice: subíamos às árvores para apanhar as cerejas que pendurávamos nas orelhas, como se fossem brincos de rubis doces; esfolávamos os joelhos e chorávamos depressa, que o tempo era de rir; fazíamos os deveres na mesa da cozinha, depois do
- cala-te, agora, um bocadinho. Vai dar Simplesmente Maria,
que era uma radionovela que fazia sentar a minha avó e a Maria, iguais na manifestação de solidariedades à protagonista, à frente de uma xícara de café, a partilhar lágrimas e comentários.
Lanchávamos, depois, pão com manteiga na mesa de vime do quintal, antes da retoiça e dos gritos e das aventuras, rua abaixo, fazendo voar a bola de quintal para quintal. Quando chovia, guardávamo-nos dentro das casas, no beijo de um livro – muitas vezes requisitado na carrinha da Gulbenkian, que o dinheiro não dava para esses luxos – ou de um jogo da glória ou de cartas que animava as tardes, antes do hino que iniciava a emissão da televisão. Já estava na 4ª classe, quando ela chegou à nossa casa. A preto e branco. Os bonecos animados de plasticina da Polónia e a voz de Vasco Granja acordavam a minha adolescência.
Mas era à noite, depois de um banho e do jantar que a magia tomava conta de nós e enrolávamo-nos nos braços da mãe ou no colo do pai e ouvíamos o Se Bem me Lembro do Vitorino Nemésio e contávamos o dia ou ficávamos, assim, calados, envolvidos no amor daquele abraço, a beber a força que haveria de nos levantar, no dia seguinte.
Passávamos assim o tempo no tempo do
- era uma vez.
E éramos felizes. Tínhamos a vida aos nossos pés.

terça-feira, 24 de maio de 2011

A curva da felicidade

A felicidade mora ali. Tem forma de sorriso e perfumes de campo quando as flores pequeninas explodem do chão. Tem sabor de coisa conquistada. Tem palavras vestidas pelo sol da manhã. Põe-se ao peito como um colar e contagia-se, porque queima e ilumina e enfeitiça. Está ali. Na curva do hoje, escondida debaixo das pedras do medo, da desconfiança, da doença.
Temos de a descobrir. Ela está ao alcance da nossa mão. Está nas coisas pequeninas que compõem as horas dos nossos dias, nos silêncios iluminados dos olhares que incendeiam os nossos, naqueles momentos de gelo que nos impedem de olhar os céus. Está no abraço apertado dos amigos, no aconchego doce das casas, no sabor antigo da sopa de couve que fumega na mesa, no beijo que nos espera ao fim do dia.
A felicidade está em nós: em nós connosco, em nós com os outros, em nós com Deus – tenha Ele o nome que tiver.
Ao virar da curva da nossa solidão, está a pista para a encontrar. Fácil, fácil. Talvez por isso não valha a pena nos fixarmos nos negrumes da noite, nas pequenezes dos nossos egoísmos, nas palavras-pedras que atiramos para matar, nas coisas-poucas que nos fazem sofrer e chorar e lutar contra nadas que tomam conta de nós.
A felicidade mora aqui. (Está a ver o meu dedo apontado para mim, para si, para o mundo?) Bem no centro de nós.
Às vezes, iludimo-nos nas formas de a encontrar. A sua verdadeira ajuda está mesmo aí, nessa mãos que vive no fundo do seu braço, nesses pés que suportam o seu corpo, nesse coração que teima em bater, nesses olhos capazes de se embriagar com a beleza das coisas.
Se quiser, vou consigo. Precisamos um do outro para encontrar a curva certa, sem nos perdermos no caminho.
Vamos ser felizes? Diga que sim. A vida fica tão mais simples.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Escolhe a vida e viverás

Não há outra escolha. Não há outro meio para sobreviver à angústia, ao desalento, à noite destes tempos que estão velhos. Não há alternativa para lutar contra a(s) morte(s) de cada dia.
Escolher a vida é descobrir que há sorrisos atrás do véu das lágrimas que, tantas vezes, nos impede de ver o que fica para além do que se vê. É encontrar a fonte de luz que as nuvens coam e que luta, tantas vezes, para abrir brechas nos céus; é perceber a música que o vento compõe nas cordas das árvores.
Não há outra escolha senão a da vida. De contrário, a tristeza toma conta dos nossos silêncios, ensurdecemos com os gritos suicidas do desespero, dos erros que cometemos, porque dói menos, porque é mais fácil, porque sim. Apenas porque está na moda, porque é de velhos e de beatos defender os valores antigos.
Estamos sós, cada vez mais longe dos outros, cada vez mais longe de nós. Perdemo-nos das nossas famílias, perdemo-nos nos caminhos que nós próprios traçámos, fechámo-nos dentro do nosso condomínio interior.
Esvaziámos as palavras. Dizemos,
- amo-te,
sem nada dentro, um verbo sem alma, sem para ti, sem amorizar os gestos, o coração, os olhares.
Lembrar-se da vida é escolhê-la. É fazer dela nossa, mas para os outros. É descobrir-lhe o sentido na verdade de quem queremos ser.
“Escolhe a vida e viverás”. Teremos nós outra escolha?

sexta-feira, 13 de maio de 2011

eu vou

- Eu vou.
É esta a chave desta semana. O verbo ir reveste-se de um significado maior, porque coragem, porque serviço, porque caminho que se faz, acertando os passos com o coração.
Os jovens entendem esta linguagem. Sabem que as mãos servem para dar, que os braços servem para abraçar e que as palavras têm o poder de salvar e perdoar e beijar e mudar a ordem do universo.
Alguns são chamados. Especiais. Os fortes respondem,
- presente,
mesmo sabendo o que isso significa de entrega, de despojamento, de escolhas. Procuram, então, o seu lugar, a melhor maneira de seguir as pegadas que Deus deixou na areia do chão. Deixam as redes arrumadas na praia, libertam-se do que não vai ser preciso e deitam fora tudo o que pesa. Sabem que a vida vai ser outra e que o caminho é para lá, sempre para lá, para mais perto das gentes, para mais perto de si.
Quem aceita o desafio, levanta a âncora, prepara a luz para alumiar as noites, põe a esperança na bagagem, deixa no cais a saudade do que fica e vai. Segue o caminho que escolheu. Porque nesta viagem, é possível escolher: entre carismas e talentos, entre silêncios e palavras, entre o amor e o amor. Esta é a escolha definitiva. Igual para todos os serviços, igual para todas as marés.
- Eu vou
é a decisão da generosidade, o grito jovem de quem não tem medo da voz do vento que chama pelo seu nome, de quem não tem medo de arrumar os passos, de arrumar a vida, de procurar a razão para a sua felicidade.
Quem vai, vai. Mesmo sabendo das tempestades e da intensidade dos sóis que parecem derreter as coragens. Mesmo sabendo que, às vezes, será um navegador solitário que luta contra a indiferença do mar.
Quem fica prepara o mar. Alisa as ondas para facilitar o caminho. Fica às portas dos regressos para poder ajudar.
É preciso não ter medo de escutar. O seu nome é o mais bonito de todos os nomes. Vá. A decisão de ir é sua. Leve um abraço para o caminho.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

FESTA DA FLOR

Venha comigo beijar a cidade. Deixe-se enfeitiçar pela beleza das flores que enfeitam as ruas. Deixe-se embebedar pelo aroma doce dos miúdos que desfilam nas ruas despidas de angústia. Deixe que o seu coração arda no abraço da festa. Deixe que o tempo se espreguice na meiguice dos olhos que se espalham nas montras, que se derramam nos jardins inventados da praça, que se pousam nas mãos que pegam ao colo o que a natureza oferece.
Deixe-se ir. Olhe para cada sorriso que se cruza com o seu. Sorria também. Talvez assim a dor fique mais branda. Talvez assim a primavera amanheça neste maio que arde no peito como se fosse Emaús, como se os caminhos não estivessem despidos de passos, como se o dinheiro ainda desse até ao fim do mês, como se
A rir, como se a vida fosse só isso – rir – duas crianças. A mais velha tem flores na mão. São flores pobres daquelas que não se compram nas floristas, são flores das que se apanham no chão dos jardins dos outros, são flores básicas, daquelas que qualquer menino sabe desenhar na inocência branca da folha da escola. Trá-las em punhado, ensolarando a mão. Trá-las assim: apertadas, como se ali se escondesse o futuro, apertado, ele também.
Não tem nome. A menina da minha história não tem nome. Nem idade. Nem mais nada. Tem, ao colo, um menino que lhe chama
- mãe.
Mãe é o nome da menina da minha história. Deixou os sonhos floridos de rosas vermelhas, no dia em que acreditou na ilusão de um amor menino que lhe oferecia um ursinho de peluche no dia dos namorados.
Traz flores brancas na mão. E ri. Como se a vida fosse de rir. Há-de fingir que vai para a festa. Há-de falar ao menino e dizer-lhe,
- meu amor,
como se isso fosse o bastante, como se as flores da festa fossem para eles, como se
Venha. Vamos deixá-los acreditar que amanhã ainda vai ser melhor, porque amanhã. Só por isso. Por ser amanhã.
Escolha a sua flor. Já escolhi a minha. Ponha-a na lapela, ou no cabelo ou no peito. Deixe que ela perfume a sua vida.
Ouça a música que a natureza lhe oferece. É para si. Ouça-a. Deixe-se ser feliz. A cidade tem um beijo escondido para lhe dar. Aceite-o, por si, por mim, pela esperança que o riso da menina da minha história nos traz.

terça-feira, 3 de maio de 2011

ÀS MÃES. À MINHA

Há um lugar no coração dos homens que tem a forma de colo. Redondo. Quase uterino. É feito do amor das mães, muito maior do que se escreve na tatuagem do braço, porque desenhado a fogo na vida da gente.
Nesse lugar, ficam guardados os beijos que beberam as nossas lágrimas, acalmaram as nossas dores, calaram os nossos gritos e refrescaram as nossas testas. Esse lugar foi a semente do que somos: gente com ternura dentro.
Abrigámos lá os nossos sonhos-meninos, depositámos lá as nossas esperanças, escondemos lá as desilusões e arquitetámos o futuro no mundo que os olhos delas nos mostravam.
Desse lugar, partimos à procura do sul, do sol e do sal, porque foi lá que nasceu para nós, só para nós, o calor, a alegria e a vontade. Porque é lá que os anjos dormem, enredados nas contas que as mães desfiam por nós. Ali, Deus colocou a semente da força, num berço – braço – abraço que nos embala no silêncio das nossas vigílias. Um aconchego, ora andorinha, ora papoila, ora folha caída no chão, nunca geada.
No coração dos homens mora o que fica das mães, depois que elas se vão embora: o segredo dos sorrisos, a ternura das mãos, o calor infinito do abraço. Nesse lugar, somos eternamente meninos, eternamente amados, eternamente filhos.
O retrato das mães fica sempre descoberto nesse lugar que Deus criou no coração dos homens. Imenso. Doce. É que Deus inventou as mães para nos explicar o amor. E elas, generosas, aceitaram a missão.
É assim com todas as mães. Com a minha.