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quinta-feira, 28 de julho de 2011

NOVOS MARINHEIROS

Dizem que sim. Que vão sem olhar para o que ficou na margem da vida. Que hão-de partir para onde for preciso estar, na entrega total de quem são, na verdade de cada um.
Hão-de derramar-se no chão e deixar, nesse despojamento, os desejos do mundo. Hão-de vestir-se de Deus e deixar que Ele faça o resto. Vão. Mesmo que as lágrimas teçam cortinas nos seus olhos. Mesmo que o medo lhes prenda as liberdades. Mesmo que a dor grite, ensurdecendo os silêncios necessários para escutar os sussurros da brisa aos ouvidos das árvores ou a doçura dos rouxinóis a enfeitiçar as manhãs.
O mar. Estes rapazes procuram o Mar. E o Mar tem nome de irmão, de esperança e de coragem. O Mar tem nome de entrega e veste uma túnica limpa e tem abraço de Pai e uma lei que aponta futuros novos, mais azuis.
O mar. Estes rapazes têm o Mar no peito, pendurado numa cruz que guardam no colo e que é arma de luz e essência de vida.
Hão-de conhecer a direcção dos ventos e a força dos mares. Hão-de lançar a âncora muitas vezes. Hão-de desencalhar as canoas que derem à costa no calhau. Hão-de partir e regressar muitas vezes . Hão-de ir. Estes rapazes hão-de ir. Muitas vezes. E voltar. Muitas vezes também.
Dizem que sim. Que o Mar os inspira, porque são do Mar. E o Mar é esse infinito com voz de Deus, a mesma voz que, um dia, os chamou pelo nome e pediu a cada um:
- Vem. Segue-me.
Dizem que sim. Como terão de fazer todos os dias das suas vidas.
Que o Mar [imagem do infinito de Deus] os guarde. Que eles saibam ser marinheiros fiéis. E se façam à Distância. Porque nesse longe mora o coração dos homens.
E se precisarem, há muitas canoas no mar. As nossas. Dentro delas, temos braços para ajudar a remar.

domingo, 10 de julho de 2011

NEGOCIOS


Hoje, sou eu que lhe empresto o meu sorriso. É pelas vezes que me emprestou o seu. Entrego-lhe aquilo que sei fazer e que é o melhor de mim. Em troca, peço-lhe que esteja comigo, na contemplação deste sol e deste mar que abraça esta ilha onde moramos e que nos habita, também.
Fazemos assim, esta semana: trocamos abraços por palavras. Eu conheço palavras doces: palavra amor, palavra amigo, palavra ficar. Trocamos sonhos antigos de futuros por segredos de um tempo bom em que nos bastava viver para ser feliz. Trocamos apertos de mão por esperança e ameixas amarelas por flores do campo.
Tenho silêncios pequeninos para troca. Preciso daquele Silêncio com voz de Deus, aquele que acende as noites mendigas de lua.
Preciso de frases brancas e metáforas novas. Dou em troca o trabalho das minhas mãos e a vontade de mudar alguma coisa, também dentro de mim.
Hoje, ofereço-lhe as minhas palavras. Faça-as suas, se isso lhe der jeito para completar a caderneta de cromos que é a vida. Precisamos uns dos outros. Todos. Uns têm os sentidos, outros os não-ditos; uns têm a ideia, outros a vontade; uns têm a esperança, outros a coragem; uns têm a música, outros os instrumentos.
Tenho alguns cromos repetidos. Faltam-me ainda muitos para completar a caderneta. E há uns raros… se alguém tiver…
Preciso de si, portanto. E das suas histórias. E das suas lembranças. E da verdade da sua leitura.
Entretanto, empresto-lhe o sorriso das minhas palavras. É pelas vezes que me sorriu. E me deu ânimo. E me abraçou.
Fico à espera. Tenho cromos para troca. Mas tenho, também, muitos quadradinhos da caderneta por completar.
Um abraço.

sábado, 2 de julho de 2011

cartas, carteiros, mulheres

A rua da minha infância era uma rua de mulheres, na parte da manhã. Todos os dias, por volta das onze, enquanto o almoço ganhava corpo no fogão e a roupa da cama se arejava à janela, as portas entreabriam-se e elas esperavam o carteiro no caminho.
Era a hora de todas as esperanças, de alguns medos, de sonhos eternamente adiados. O Sr. Agostinho tinha os olhos da cor da distância, claros de mar e de saudades e uma voz doce, um pouco enrouquecida do sol e da chuva, dos subires e desceres das ruas daquele tempo.
Na bolsa de couro do Sr. Agostinho, guardavam-se segredos que as folhas de linhas azuis revelavam , no rasgar cuidadoso do envelope, no estalar do papel, na nota que vinha dobrada em quatro e que cheirava às venezuelas e aos brasis dos sonhos velhos,
“Minha querida e sempre lembrada Maria”
na eterna vontade de ter casa sua, de trazer anéis nos dedos ou um dente de ouro a iluminar o sorriso.
O Sr. Agostinho parava a rua da minha infância, por volta das onze: era a carta de chamada que preparava outras partidas, era a prova de vida do soldado que tinha ido lutar pela pátria, em nome de um dever juvenil nas picadas do ultramar, era a saudade molhada de sal de outros mares de quem tinha ido à procura de mundos, de vidas, de quem tinha fugido da tropa, de quem não estava. Simplesmente.
Os ausentes faziam pontes de papel com os que tinham ficado na rua da minha infância:
- Vizinha, recebi carta do meu António.
E a vizinha lia as palavras e os silêncios e os não-ditos e as perguntas e as respostas e as promessas,
- adeus, adeus, até ao meu regresso,
que alimentava as semanas das mulheres da rua da minha infância.
- Então, Sr. Agostinho?
- Hoje, não há nada.
E o silêncio. E o medo. E a angustia de receber uma carta com a tarja preta do luto.
O Sr. Agostinho já não distribui as cartas e os postais de paisagens de neve que chegavam em pleno Agosto. Guardo dele, os olhos e a voz. Guardo o sorriso. E a imensa curiosidade de criança de conhecer os futuros que abrigava dentro do saco.
Já ninguém espera o carteiro na minha rua. O coração já não bate à vista do selo. Já ninguém limpa as lágrimas ao ponto final,
“Adeus até ter notícias tuas”.
E é pena.