Número total de visualizações de páginas

sábado, 17 de julho de 2010

PORTO SANTO

Querem que eu conte? Eu conto.
Naquele tempo, as palavras calavam-se para ouvir passar a vida. A terra tinha as luzes acesas até tarde, porque era Verão. Agosto, talvez, que é o mês em que o céu está mais feliz. O mar, de um azul - azul, abria-se no cais, caseado de espuma.
No barco, o mundo. No peito, a aventura. Na gargalhada, a alegria de ir de férias e de levar dentro das caixas tudo o que era preciso para ser feliz: a toalha, o bronzeador, o bacalhau para o enjoo, o medo da Travessa, a vontade de chegar e pisar o chão louro de um Porto Santo que nos enfeitiçava os sentidos.
Depois, o desembarque mareado nas colunas do cais velho, o andar de marinheiro mesmo depois da amurada, os amigos à espera, os olhos gulosos de mar e o cheiro brilhante do sol.
Esses eram os dias da liberdade merecida. O bafo quente dos cardos e dos canaviais inebriava-nos de tudo. Éramos miúdos inocentes e felizes. Não precisávamos de mais nada, porque não tínhamos medo: nem do sol, nem do cancro, nem da vida. Estávamos juntos e tínhamos tempo para sermos uns dos outros. Partilhávamos a casa com outra família, vivíamos em comunidade durante duas semanas: tudo era de todos: o pão e as uvas, a água da Fonte da Areia e os figos do quintal.
Quando a tarde caía, vermelha e quente e o sol tomava banho no horizonte, um banho de mangueira à porta de casa tirava-nos a areia e refrescava-nos o espírito.
O resto? Uma mesa de gente
- abençoa, Senhor, o alimento que vamos tomar,
a fome de que quem é novo, as conversas cruzadas sobre os pratos, as histórias de um dia em que o mundo se guardara na praia, na sesta do alpendre, no passeio de jerico, no queimor da pele sem medo de escaldões, na roda da eira,
- ei, Morena!
As noites do Porto Santo tinham sabor a liberdade. Andávamos à solta no Largo das Palmeiras, provando os gelados do quiosque, entoando Zeca Afonso, nas escadinhas do cais, contando anedotas à volta da fogueira, ao pé das casas dos barcos.
Não tínhamos dinheiro, nem televisão, nem sabíamos que um dia, um aparelho chamado computador havia de mandar na nossa vida.
Não tínhamos nada. Apenas amigos e vontade de viver. Tínhamos tudo o que era preciso e éramos felizes.

5 comentários:

  1. Mais que uma geração (sou testemunha disso) se reconhece/recorda na paz e felicidade que emanam do teu texto. Obrigada!

    ResponderEliminar
  2. Já conhecia as peripécias; faltava a beleza da tua escrita.

    ResponderEliminar
  3. O Porto Santo doutros tempos.
    Eram assim as minhas férias.
    A praia o sol o mar.
    Á noite o Largo das Palmeiras, a Baiana, o
    Cais, o Pau de Sabão a chegada do barco.
    Que saudade.....

    ResponderEliminar
  4. Oque eu adorava mesmo, eram as lambecas da Baiana.
    Depois as noites longas passadas no cais, vendo a pesca amadora.
    A primeira vez que dui ao Porto Santo tinha onze anos. Fiquei na Lapeira no Lugar de Baixo, na casa de um familiar.
    Foi a primeira vez que andei de mota, sem capacete, e vi os cachos gulosos de uvas e as melancias verdes de desejo correrem no quintal.
    À noite íamos para a vila e corríamos todo espaço junto ao pau de sabão, subíamos e descíamos a rua das palmeiras vezes sem conta, enquanto os mais velhos conversavam com o arraz do Maria Cristina ou do Devoto Santíssimo, ambos conhecidos do meu pai.
    Apesar de não gostar de viajar, todos os anos o meu pai regressa ao Porto Santo e é tratado como se fosse filho da areia.

    ResponderEliminar
  5. A minha primeira vez foi aos 9 meses :) Claro que dessa não me lembro bem, ou penso que não me lembro... a verdade é q este amor pelo PS (ilha...) não tem qualquer explicação racional mesmo com mtas recordações à mistura. Talvez pq, como diz a Leonor, "Naquele tempo, as palavras calavam-se para ouvir passar a vida".

    ResponderEliminar