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quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O MEU AMIGO

Abre-me o mundo num sorriso. Traz-me, cada dia, uma história nova, feita de pedaços de memória que vai regando com versos soltos de poetas que nunca li. Traz-me um tempo que eu nunca conheci, porque nunca precisei de trabalhar para ajudar a pagar a renda, nem de fugir de casa quando a chuva ameaçava romper o telhado, nas noites sem lua de invernos antigos.
Fala-me de outros homens que não tiveram tempo de ser meninos, de crescer no vagar que os rapazes precisam, para saber de que matéria é feita a vida. Fala-me da impossibilidade de seguir o caminho que o sonho lhe pedia, o de ser doutor. Fala-me dos livros que aprendeu a amar no impossível de os ler. Fala.
Sorri. O seu sorriso ilumina a minha tristeza. Nasceu no tempo da guerra. Lembra-se da fome e do medo de querer mais um bocado de pão. Lembra-se da vergonha que sentia, quando os buracos dos sapatos o impediam de se ajoelhar na igreja. Lembra-se de querer mais, muito para além da tipografia onde trabalhava, dos recados que fazia e do dinheiro que entregava à mãe no final da semana. Lembra-se do rol da venda,
- para a semana, vizinho, ponha na conta, por favor.
Fala muito, o meu amigo. E sorri. Como se a vida não o tivesse impedido de ter sido criança, de jogar à bola com os amigos, no caminho, de ir à escola e aprender a ser doutor. Como no sonho. O impossível.
- Estes rapazes não entendem. Tiveram tudo. Não sabem o que custa ser homem, lutar pelas coisas.
Sabe da vida, o meu amigo. E sorri. O seu sorriso faz-me pensar em tudo o que tenho e que não dependeu do meu esforço. Conta-me que os seus filhos são o que ele nunca pôde ser: doutores. E o orgulho do seu olhar derrama luz na nossa conversa. Fala-me deles e da casa que construiu e que é sua, porque amassou a areia com suor, sangue e algumas lágrimas. Fala-me do futuro e do medo dele.
- Nunca fui menino, nunca brinquei com carrinhos de lata, não estudei, não fui doutor, mas aprendi que a vida tem muito mais valor assim. Porque os miúdos de agora têm tudo, mas não têm nada.
O meu amigo tem, em cada manhã, uma história nova. E sorri. Tem a juventude que não viveu a iluminar-lhe os olhos que se acendem debaixo dos cabelos brancos.

2 comentários:

  1. Quanta juventude se adiou para a estação das neves branqueando a experiência da vida?
    Quantos folguedos ficaram apertados na angústia dum futuro incerto?
    Quantos homens cresceram antes do tempo, no tempo que não tinha tempo para a infância?

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  2. O teu amigo deve ser uma pessoa muito especial ou será que é o teu texto que lhe empresta essa qualidade? Fico na dúvida ;)

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