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sábado, 23 de outubro de 2010

A DOR DA ÁGUA


“Era água, mas ardia”.
(Mia Couto, idades cidades divindades: 103 )

De repente, o céu voltou a derramar-se sobre a Ilha. Empurrámos a montanha com o olhar e pedimos-lhe que não, que não viesse, de novo, enterrar a vida que se constrói nas suas raízes. Porque o povo daqui vive na raiz Das montanhas, com os olhos postos no mar. Fugimos das estradas que a água rasgava nos caminhos. Trancámos as casas e ficámos à espera que acabasse. A chuva. O medo. O grito que a ribeira enrolava na garganta do calhau.
E rezámos. Pedimos que o céu se calasse, que o mar escoasse os restos que o fogo deixou, na ânsia de comer o que não lhe pertencia. Chamámos por Deus, como fazemos sempre que a angústia nos rói o entendimento.
De repente, o silêncio. Um silêncio de lembrança. Um silêncio de estilhaço. Um silêncio. Apenas. Sabemos bem como são fracas as nossas paredes. Mas sabemos também que há mãos que sabem como sustê-las. Sabemos bem como dói a água no peito de quem vive na beirinha da terra. Mas conhecemos também a sede do chão que a conduz aos alicerces das árvores. Sabemos bem a cor do medo de quem já viu a maré levar às costas o que é seu. Mas sabemos também que há braços que seguram as casas e as impedem de voltar a morrer.
A chuva voltou. E doeu. A água das ribeiras desaguou no nosso peito. E doeu. Lembrámo-nos de que a vida se suspende na fragilidade de um fio. Mas percebemos também que não estamos sós, porque, de vez em quando, um rasgo de azul afastava a chuva, trazia a esperança e sentíamos que, afinal, Deus tinha escutado o nosso
- Rogai por nós.
A água doeu. Mas a dor vai passar.

3 comentários:

  1. Excelente texto, de novo. A água da alegria e da vida é também a agua da dor e da morte

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  2. Excelente texto, de novo. A água da alegria e da vida é também a agua da dor e da morte

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  3. A água voltou purificadora e renovadora da nossa terra!
    Fecundou as mentes de medo e atirou ao mar os restos de um verão de perda.
    A água caindo lenta do céu cinzento lembrou-nos o que somos:Apenas gente!

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