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sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Um estilhaço de céu

Ontem, do alto de mim e da soberba de muitos dos meus dias, desci os olhos ao chão. Havia uma lasca de céu caída na calçada: os olhos azuis de um homem e um mar de tormenta dentro de um saco de plástico, ao alcance da mão.
Passo ali todos os dias e nunca o vi. Os meus olhos sabem escolher o que não me faz mal: a flor que nasce na lama, o bocadinho de sol por entre as nuvens ou o sorriso feliz dos miúdos que seguram o mundo dentro da mão da mãe. Nunca me dei conta da transparência tristemente aguada daqueles olhos azuis. Ontem, sim. E parei. Percebi que os meus olhos tinham vergonha dos dele. Porque tenho o sol na minha vida e ele não. Porque tenho risos pendurados nas palavras e ele não. Porque os pássaros fizeram ninhos no meu quintal e ele não tem quintal.
Passo ali todos os dias. Olho o chão onde dorme e penso,
- coitado
e ando sempre, a fazer, de cabeça, a lista do dia, a pensar em mim e na vida que não me dá mais de um domingo por semana ou no mundo que, longe, muito longe, tem vontade de morrer, ou na crise que me leva o que não tenho, ou
Às vezes, descarrego a consciência com uma moeda e fico despachadinha da boa acção do dia. Ontem, não. Parei por causa de uma tirinha líquida de azul que olhava para mim. Deixei que o meu olhar derramasse sobre ele um sorriso. Não tinha mais nada, ontem de manhã. Apenas um sorriso que me deixou com um travo amargo na garganta. Foi então que aquele estilhaço de céu queimou os meus olhos. Ou talvez tivesse sido o orvalho da minha vergonha que me subiu à cara e me obrigou a ficar ali mais um bocadinho.
Não posso garantir que o resto tenha sido assim . Mas parece-me ter ouvido uma toada que se enrolava na língua daquele homem que tinha céu dentro dos olhos:
- Obrigado, senhora.
E eu, que tenho sempre as palavras prontas, não disse nada. As minhas palavras tinham perdido a voz.
Foi então que o homem levantou o saco que tinha forma de garrafa e tomou um trago daquele mar tinto que tinha ao alcance da mão. Tinha ali o que ninguém lhe dava: a ilusão de ser feliz.
Aquele brinde era a mim. Eu voltei a sorrir e disse-lhe,
- até amanhã.
Pode ser que hoje lhe pergunte o nome.

2 comentários:

  1. Tão profundo, que fico sem palavras e também com um nó na garganta. Faz-nos pensar nas nossas lamúrias diárias, insignificantes perante a miséria de muitos que muitas vezes mais nada nos pedem do que uma atenção, um sorriso e uma mão cheia de esperança!Lindo, adorei

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  2. Quantas vezes passamos por eles e ignoramos o seu olhar.Quantas vezes por eles passamos e ignoramos que pobres somos nós?
    Quantas vezes os achámos loucos e afinal toda a loucura está em nós?

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