
Era uma vez
e a minha história começa num tempo em que havia tempo para ser feliz. Os miúdos conheciam a alegria de estar juntos e de brincar, descalços no terreiro, e de jogar ao pião nos quintais e de saltar à fogueira nos caminhos, nas noites de S. João.
Eram tempos de liberdade, os tempos da nossa meninice: subíamos às árvores para apanhar as cerejas que pendurávamos nas orelhas, como se fossem brincos de rubis doces; esfolávamos os joelhos e chorávamos depressa, que o tempo era de rir; fazíamos os deveres na mesa da cozinha, depois do
- cala-te, agora, um bocadinho. Vai dar Simplesmente Maria,
que era uma radionovela que fazia sentar a minha avó e a Maria, iguais na manifestação de solidariedades à protagonista, à frente de uma xícara de café, a partilhar lágrimas e comentários.
Lanchávamos, depois, pão com manteiga na mesa de vime do quintal, antes da retoiça e dos gritos e das aventuras, rua abaixo, fazendo voar a bola de quintal para quintal. Quando chovia, guardávamo-nos dentro das casas, no beijo de um livro – muitas vezes requisitado na carrinha da Gulbenkian, que o dinheiro não dava para esses luxos – ou de um jogo da glória ou de cartas que animava as tardes, antes do hino que iniciava a emissão da televisão. Já estava na 4ª classe, quando ela chegou à nossa casa. A preto e branco. Os bonecos animados de plasticina da Polónia e a voz de Vasco Granja acordavam a minha adolescência.
Mas era à noite, depois de um banho e do jantar que a magia tomava conta de nós e enrolávamo-nos nos braços da mãe ou no colo do pai e ouvíamos o Se Bem me Lembro do Vitorino Nemésio e contávamos o dia ou ficávamos, assim, calados, envolvidos no amor daquele abraço, a beber a força que haveria de nos levantar, no dia seguinte.
Passávamos assim o tempo no tempo do
- era uma vez.
E éramos felizes. Tínhamos a vida aos nossos pés.