CARTA A IRENE
Perdi palavras pelo caminho. Ontem, sabia de cor as histórias que o vento contava ao ouvido da minha infância. Ontem, acreditava que o Tordo cantava para mim e me enfeitiçava os sonhos de palavras verdes. Ontem, eu era Angélica e amava o mar e a serra e tinha olhos de horizontes e amanhãs. Ontem, também eu tinha corpo de ilha e ia consigo, com um pé dentro d’água e um poema na mão.
Voltei, agora, Irene, a lembrar-me dos cisnes, porque a hora se imobilizou nos versos que reli e que voltaram a derramar Água de Mel na solidão branca desta folha vazia.
Talvez tenha vergonha das palavras, porque Atena não canta e o Tempo protesta porque não tem tempo de abrir mais portas, porque o vento reclama a vida, porque, Irene, as minhas mãos não sabem amansar os frutos, nem desfazer as tintas, nem dizer as notas que se penduram nos beirais das pautas, quando o sol se põe e a rua adormece.
Só me resta o silêncio do fim do caminho, que não é o da Penteada, mas o dos afectos, o dos significados imprecisos, o das sintaxes imperfeitas.
Assim: espalhei as memórias sobre a mesa e peguei nos silêncios - silêncios de asas, silêncios de mar alto, silêncios de gaivotas que dormem nas “folgas do sol”[1]. Fui em busca de mim na ternura azul com que canta a ilha, no arrepio que faz estremecer os jacarandás, na simplicidade pequenina da voz que tem derramado por esta cidade à beira do mar, à beira do desejo, à beira de ser barco, à beira de qualquer coisa maior.
E encontrei cheiros antigos a subir as calçadas, gritos de estrelas no vazio das noites; encontrei “a luz grega de Setembro”[2] dentro dos cestos que transportaram as minhas angústias e que eu transformei em vinho.
Pelas suas mãos, sentei-me “à sombra do grande mistério / de pensar”[3], para que o tempo pudesse amadurecer as palavras. Pelas suas mãos, Irene, como pela mão de outros poetas, conheci as luzes e as sombras, abracei, perplexa, o coração das ruas e quis ser porto e navio, terra e gaivota. Às vezes, gostaria de ter sido eu a escrever que “O sol vem pôr-se em meus olhos / porque a montanha sou eu”[4]. Às vezes, Irene, tenho vontade de ser poeta. Como agora, neste instante vazio em que me faltam as metáforas.
Dá-me licença, Irene? Deixe-me defini-la assim: “Repartida. Presa pelo sentir. Liberta pelo pensar. Pedra e nuvem; raiz e asa; fogo e orvalho; amarra e oceano”[5] . Vejo-a assim: ancorada ao porto com vontade de partir; ilha e viagem. Leio-lhe uma alma maior que o corpo, que se derrama no desenho desta cidade que partilha comigo.
Devolvo-lhe o silêncio que me cura as palavras. E digo-lhe que sim, que vale a pena, que o seu nome continua a acordar as marés. Permita-me outra ousadia, Irene. Lembra-se da Rosa Panchera[6]? Vou roubar-lhe a frase e fazer dela a minha voz: “Não se vive por acaso, meu amor!”[7]
[1] Andrade, Irene Lucília, Angélica e a sua espécie, Ed. Signo, Ponta Delgada, Açores, 1993: 15
[2] Andrade, Irene Lucília, A mão que Amansa os Frutos, Ed. Cadernos da Ilha, nº 4, Funchal, 1991: 14
[3] Idem, ibidem: 19
[4] Andrade, Irene Lucília , Ilha que é Gente, DRAC, Funchal, 1986:21
[5] Andrade, Irene Lucília, Angélica e a sua espécie, Ed. Signo, Ponta Delgada, Açores, 1993: 30
[6] Ref. a personagem de Andrade, Irene Lucília, Angélica e a sua espécie, Ed. Signo, Ponta Delgada, Açores, 1993
[7] Andrade, Irene Lucília, Angélica e a sua espécie, Ed. Signo, Ponta Delgada, Açores, 1993: 62
In: Revista Margem, 29 de Maio de 2009
Gostei da tua revisitação à memória colectiva de Irene. Sim à memória de todos nós. Tinha mais coisas para escrever, mas no espanto do teu texto "Perdi palavras pelo caminho" e aqui estou de mãos vazias perante o deserto branco da noite...
ResponderEliminarLeonor: lembras-te do concurso de poesia que organizámos durante o estágio? E do texto que escreveste para apresentar a Irene Lucília que esteve na cerimónia de 'abertura' do concurso? Estive a reler, já prometia na altura ;)
ResponderEliminarJá não me lembrava disso, Dêpê. Já nem sei o que escrevi. Obrigada.
ResponderEliminarBravo! Adorei, como sempre! Como o Jordas perdeu palavras pelo caminho, vou tentar encontrá-las, porque são valiosas! E eu fiquei sem as minhas quando acabei de ler o texto de homenagem à Irene Lucília.;)
ResponderEliminarPS: Agradeço imenso o facto de teres comentado os textos dos alunos. Eles adoram que lhes leia os vossos comentários. Os alunos ainda não têm o endereço do meu blogue. Beijo, Nanda
Para quem tem vontade de ser poeta, o que lhe falta? "...as flores contêm
ResponderEliminara inteligência grácil
que sobre a mesa
perpetua o dia." Para quem o "sopro das palavras" não precisa "a
palavra
que defina o mundo
há só os sons especiais do amor."
Longe das referências - mea culpa - continuo a achar que "já ganhaste a tua gravata de poeta".
Beijos além rectângulo